segunda-feira, 8 de junho de 2009

Içar velas! Levantar âncoras! Desfazer as amarras!

"Desfazer as amarras" é uma imagem muito boa para um início de processo de montagem, hein? Desfazer-se das amarras, livrar-se dos preceitos, preconceitos, couraças, o que amarre a criação!

E o trabalho de hoje foi exatamente assim. Para o ato inaugural da nossa montagem, abri mão do timão para deixá-lo a cargo de um timoneiro mais experiente, profundo conhecedor dos sete mares teatrais, nosso amigo e parceiro Márcio Marciano. Timão de um corinthiano para outro (não podia perder a piada... Rsrs...) O Márcio está em Natal essa semana para uma tarefa dupla: cumprir a segunda etapa do projeto Oficinão Clowns, do Programa BNB de Cultura - que prevê um intercâmbio nosso com três profissionais de outros estados Nordestinos, que são o Márcio, o João Lima e o Hélder Vasconcelos -, e iniciar o processo de montagem d'O Capitão, fazendo essa primeira aproximação prática ao tema e ao texto. Nas preliminares, há um mês atrás, fizemos uma primeira brincadeira em cima do Urashima Taro, um conto tradicional japonês. Hoje, no entanto, a brincadeira com o Capitão começou pra valer.

Deixando as referências náuticas e marítimas de lado - uma hora há de se encher o saco desses joguinhos de palavras que estamos adorando fazer!!!! -, vamos ao trabalho!

Iniciamos as atividades batendo um papo sobre o que fizemos até hoje, que aproximações ao livro já exercitamos, etc. Contamos sobre as leituras que fizemos até agora (Urashima, O Velho e o Mar, Velhos Marinheiros, O Lobo do Mar, etc.), sobre o workshop em cima do Urashima, as tentativas de construção teórica sobre o texto e o trabalho como um todo - em especial a busca do sentido político em montar O Capitão. Ao longo da jornada, conseguimos nos aproximar bastante de um pensamento mais elaborado sobre o tema: a peça é uma ação de resistência ao pensamento individualizante neo-liberal. A fuga do Marinho é uma fuga à confrontação com o real, com o seu mundo, suas verdades. A questão está presente em toda a discussão do teatro de grupo e como nos colocamos no mundo hoje.

Nesta primeira conversa - assim como nas outras, ao longo da tarde/noite -, o Márcio apontou reflexões preciosíssimas sobre o espetáculo e o texto, que tento trazer abaixo:

a) Trouxe as referências da Odisséia (a cera no ouvido para não se escutar o canto da sereia) e de João Cabral de Melo Neto (no seu poema que relaciona o canavial com o mar, a nossa mesma relação de sertão e mar);

b) Aponta que o canto da sereia deve ser encantatório apenas para o Marinho, e não para o público. Como encontrar essa sutileza?

c) Para fugirmos da folclorização, precisamos subverter a "expectativa paulistana", criar um estranhamento no olhar sobre o "nordestinismo";

d) Precisamos humanizar o Marinho, quebrar a estetização da crueza da seca que as ilustrações do André propõem. Para isso, precisamos encontrar qual a medida da dor desse personagem!

Lembramos muito do Fellini e suas figuras que circulam do sublime ao grotesco com enorme facilidade, às vezes até ao mesmo tempo. Lembramos da Giulieta Masina em La Strada, figura patética e apaixonante. Referência preciosa...

Bueno, passado o papo, fomos à prática, pôr a mão na massa!

O Márcio colocou os atores em duplas (primeiro o César com a Camille e a Rê com o Marco), um sentado de frente para o outro, em cadeiras. Em cada dupla, um massageava os pés do outro, enquanto contava a ele uma história de sua infância sobre a sua relação com o mar. Em seguida, inverteram.

Trocadas as duplas (Marco/Camille, César/Rê), ele propôs a mesma dinâmica, mas dessa vez a história contada era a do próprio Capitão e a Sereia. Ao final de cada rodada, o ouvinte anotava os principais destaques da contação do outro. Depois, inverteram. A relação de cada um em contar uma história sua e uma história externa é muito diferente! Como conseguir essa relação verdadeira que se tem - obviamente - com a sua própria história, ao contar uma história alheia?

Em seguida, o Márcio deu dez minutos para os atores explorarem, individualmente, um modelo (podia ser uma pessoa real ou alguém tirado, por exemplo, da literatura) ques servisse de modelo para um dos integrantes da trupe do Marinho (que não fosse o Marinho). Este iria apresentar o Marinho à plateia, contando o porquê dele ser um grande contador de histórias, etc.

O resultado foi bem interessante. A Rê fez uma espécie de apresentador de circo, muito extrovertida, grande. Tinha uma leve proposição de sotaque estrangeiro, o que é bem bacana para pensarmos pra um desses personagens. O César trouxe uma proposta bem semelhante ao da Rê, apesar de ainda mais extravagante, como lhe é peculiar. O Marco trouxe o nosso querido Ernani Maletta, e foi muito engraçado, fazendo a gestualidade do maestro, a mania de falar de olhos fechados e achar as coisas "do caralho, do caralho!". A Tililim - que é a Camille, pra quem não sabe - fez uma espécie de malandro, maloqueiro, meio rapper. Depois, o César fez mais uma experimentação, desta vez um velho, usando o bastão como uma bengala.

A partir destes tipos, o Márcio propôs uma improvisação para os meninos. A situação era o momento em que a trupe descobre que o Marinho os deixou. Cada personagem teria uma reação diferente, da seguinte forma:

A - Defende que eles devem tocar o barco sem o Marinho (Renata);

B - Defende o Marinho, achando que ele não os abandonou (Camille);

C - Decide ir embora, largar a trupe também (Marco);

D - Quer ir embora, mas antes destruindo o barco (César).

Em seguida, o C é convencido pelo D a destruir o barco, a situação se extremiza, até que B começa a cantar uma canção que agrega todos novamente e finaliza a cena.

Os meninos fizeram uma cena muito divertida, com os personagens muito carregados, radicalizando na tipificação e na carga cômica. O César fazia um "monstro" (qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência) que berrava e queria destruir tudo, e o Marco com sua caricatura do Ernani era muito divertido. Desde já, podemos notar como o grupo tem o hábito - os meninos em especial - de abrir muitas portas o que, às vezes, atrapalha o foco dramatúrgico desejado. É divertido, mas às vezes desnecessário.

Após a cena, o Márcio pediu que ele refizessem a cena, desta vez com ênfase nas relações, "como se fosse uma cena de Eugene O´Neill" (ou foi Tenesse Williams?). O resultado foi bem interessante. Não se perdeu tanto do teor cômico e dos tipos, que foi bacana na primeira experiência, mas as relações foram mais interessantes e o foco do discurso da cena ganhou muito. Ainda surgiram algumas digressões, como uma piada idiotíssima (e genial) do Marco, logo no início da cena, quando o personagem da Renata entra falando algo do tipo:

- Senhores, tenho uma notícia muito ruim. O nosso mestre, que nos fez descobrir o sertão, se foi...

E o Marco:

- Quem? Luiz Gonzaga? Ah, mas já faz tempo!

Apesar de ter arrancado boas gargalhadas de todos, depois avaliamos como essas piadas não contribuem para o funcionamento da cena (mas que foi boa, foi...).

Depois, fizemos uma boa avaliação do trabalho, mais uma vez muito material foi levantado, o pensamento amadurecido, muito além, aliás, da simples questão do texto ou do espetáculo em si; conversamos sobre teatro de grupo, nossa existência, etc.

Enfim, melhor início de trabalho não poderia ser! A cabeça a mil, e uma certeza de um processo muito rico que nos espera!

O SERTÃO VAI VIRAR MAR! O MAR VAI VIRAR SERTÃO!

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