terça-feira, 28 de abril de 2009

O Capitão de Si Mesmo

Nas cartas que Jostein Gaarder enviava a pequena Sofia tratava sempre de lembrá-la que o caminho do conhecimento só se faz mediante a constante presença da dúvida. Não que os Clowns de Shakespeare tenham pautado seus princípios filosóficos na obra do famoso escritor, mas fato é que de uns tempos para cá, já na história mais recente do grupo, as atividades reflexivas e de pensamento tem dividido cada vez mais o espaço que anteriormente era ocupado apenas pela prática.

No ato de pôr em constante dúvida as questões mais primárias como “a necessidade da arte” ou ainda “o porquê de fazermos teatro”, o grupo vem amadurecendo a cada período, apontando sua sonda para o chão e conseguindo articular em níveis cada vez mais profundos o discurso sobre sua atividade artística, social e humana. Nesse mesmo contexto, no refluxo dialético do processo, busca também que sua prática seja conseqüência do pensamento articulado, que traga consigo as reflexões do seu discurso, suas dúvidas e inquietações.

A questão é que, nesse ínterim, mais precisamente no final de 2008, por questões das mais diversas, entre elas pela necessidade de uma rápida reestabilização do coletivo devido à saída de três dos seus sete integrantes, o grupo se depara com a montagem do espetáculo “O Capitão e a Sereia”, a ser inspirado no texto literário e ilustrações da obra homônima do pernambucano André Neves.

A decisão por essa montagem não chega a ser um fato imposto para o grupo visto que tal escolha parte do próprio coletivo mas, diferente do que sinalizava o fluxo que vinha sendo construído, também não é conseqüência direta de um processo investigativo, artístico ou reflexivo. Fato é que a escolha de “O Capitão e a Sereia” se deu de maneira fria e pragmática, a fim de atender as prerrogativas de um edital de montagem cuja data limite se colocava exatamente uma semana à frente.

Todo esse preâmbulo é só para dizer que, dentro do foro do Clowns de Shakespeare, o Capitão Marinho, personagem que protagoniza a obra ”O Capitão e a Sereia”, inverte o ônus da prova. Não cabe mais ao “Capitão” provar as qualidades necessárias a se fazer integrante do repertório de espetáculos do grupo, visto que isso já é fato consumado e por todos tutelado. Ao mestre Marinho cabe agora a premissa do direito universal: todos são inocentes até que se prove o contrário. Cabe agora ao grupo provar pelo mestre e não ele ao grupo. É preciso que o grupo encontre na saga de “O Capitão e a Sereia” os elementos necessários ao seu próprio discurso e, para isso, é necessário que os Clowns façam da história de Marinho sua própria história.

Para o nosso desafio forense o mais sensato é fazer uma constituição do citado personagem e de sua história a partir do que temos de concreto, e isso não é mais do que um texto literário de quatro laudas em fonte e papel iguais a este. No entanto, como elemento facilitador, André Neves escreve de forma clara e sintética sobre o jugo do universo popular e traz consigo toda uma carga simbólica e arquetípica inerente. Em “O Capitão e a Sereia” não são raros os fatos ou momentos que, de uma forma ou de outra, já tenham ocupado o nosso imaginário. São histórias e personagens que com certeza já nos deparamos em algum momento, seja na vida real ou no universo literário. A impressão que dá é que de alguma forma já temos alguma intimidade com a obra mesmo sem nenhum contato anterior.

Como ponto de partida, observando o conjunto cultural descrito na história e o singelo sonho que Marinho carrega consigo até a idade avançada, que não passa do simples desejo de conhecer o mar, podemos concluir que nosso protagonista pertence a alguma família desprovida de oportunidades no interior nordestino.

Nesse contexto do universo fabular e sobre a maestria do autor, Marinho já nasce com rumo certo, seu destino é ser artista. Particularmente não me agrada muito o termo “artista nato”, mas também confesso que não sei identificar nesses casos o momento em que se dá a gênese do artífice. Vejo Marinho como um Luiz Gonzaga, um Jackson do Pandeiro, um Patativa do Assaré, um Valdemar dos Passarinhos. Como alguém já nos primeiros olhares que joga sobre o mundo se rebela contra a aridez da realidade na construção do seu próprio universo simbólico. Vejo Marinho como alguém desprovido de intelectualidades, mas repleto de sabedoria.

Marinho cresce e monta sua trupe de mambembes. Sai pelo sertão mostrando sua arte em cada canto. Como os outros artistas citados, Marinho se exime do destino a que estaria fadado no momento em que aprende a conjecturar sobre a realidade. Para mim esse é o primeiro bom argumento em prol do nosso personagem, ele entende que no campo do simbólico é uma pessoa livre, e lá pode especular sobre o real. Constrói sua linguagem e se torna homem. Como a flor que brota em chão rachado elabora sua seiva a partir da escassez, define o mar a partir da imensidão de terra rachada, a brisa úmida pelo bafo seco da caatinga, a fartura pela fome. Essa é a sua inteligência e ao mesmo tempo sua poesia.

No entanto, dado certo momento, Marinho larga sua trupe e sua profissão e vai atrás daquilo que sempre cantou. Segue em jornada em busca do mar que com tanta verdade a muitos descreveu e que em verdade nunca viu. Segue em peregrinação até que um dia se depara com uma paisagem a muito idealizada. Chega ao mar e lá monta moradia, faz amigos, constitui uma nova vida. Encanta-se por todas as belezas que as profundezas do mar têm a oferecer. Marinho prova e se lambuza com a mais doce e úmida das realidades. Mergulha profundamente ao canto de uma bela sereia, e lá se perdura. E se foi um dia, e dois dias, e três... E se foi uma semana, duas semanas, e três... E um mês, e dois meses... E um ano, e dois anos, e três... Até que certo dia, do fundo das profundezas, ele simplesmente para e diz “vou para casa”. Marinho sai do mar e volta para o seu lugar. E temos aí a segunda e talvez mais preciosa chave da nossa história.

Fico a imaginar como se fez esse entendimento no mestre para que ele decidisse voltar para a aridez de sua terra. Mais uma vez não consigo fugir da analogia a Luiz Gonzaga que depois de conquistar sucesso e dinheiro no Rio de Janeiro, juntou tudo que tinha para terminar sua vida no coração do sertão, em casa simples e alpendrada na cidade onde nasceu, se locomovendo até quando pôde nas costas de um cavalo. Tenho convicção que Gonzagão não fez isso por generosidade, penitência ou promessa, mas sim por necessidade.

Embora acredite que a iluminação alcançada pelo nosso protagonista no momento em que não escuta mais o canto da sereia e resolve voltar ao seu lugar ainda é merecedora de muita discussão e investigação, já me arriscaria a lançar uma primeira teoria. Sou levado a acreditar que Marinho é um artista e como tal o que faz verdadeiramente sentido para ele é o diálogo entre os dois mundos. Para ele o mar só faz sentido na aridez do seu sertão, e em mais nenhum outro lugar. O artista só se faz pleno na pororoca de sua expressão adentrando a sua realidade material através daqueles que o circundam. No mar, Marinho não fazia sentido, perdia o seu papel, sua dignidade, sua função artística, social, tinha suprimido seu mais belo potencial humano.

Tenho dúvidas se Marinho tem esse nível de consciência, mas tenho convicção que de algum modo esse entendimento se consuma dentro dele. A questão agora passa a ser se ele vai encontrar o mesmo lugar que deixou, os mesmos amigos, a mesma trupe. Também acho difícil. Acredito que Marinho agora pagara o preço do conhecimento que adquiriu. O homem não é mais o mesmo, consequentemente seu lugar também não.

E nós? Somos uma trupe em busca de quê? De nós mesmos? Qual a nossa jornada? Qual será o preço do nosso conhecimento? Como crescer sem abrir mão de nos mesmos? Como alçar grandes vôos sem que deixemos de nos reconhecer nesse processo? Existe uma moral nessa história? Precisa existir uma moral nessa história?

Não vejo outra maneira de encerrar essa primeira abordagem sobre “O Capitão e a Sereia” se não da mesma forma que comecei: buscando.

César.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Arrumando o barco

Se Jogue!

Essa expressão por muitas vezes utilizamos para encorajar um companheiro que se encontra com dificuldades de executar ou realizar um determinado propósito. De encarar um desafio, de utilizar dos artifícios que nem ele tem noção que os possui para alcançar êxito na sua busca.

No final do ano de 2008, depois de uma grande mudança no grupo, nos deparamos com um presente maravilhoso no qual a quase três anos não tínhamos a oportunidade de efetivá-lo: uma nova montagem patrocinada. Mas essa tem um grande diferencial, ela marca o primeiro trabalho desta nova reconfiguração do grupo.
2009 abre com os horizontes voltados para o mar, levando para mais tarde, mas sem deixá-lo de lado, o árido Ricardo III.

O Capitão e a Sereia nos coloca mais uma vez no desafio de encarar um novo processo de montagem, de ter que se jogar nesse vazio que dá medo, mas que desejamos. Que está tudo em branco, mas que quando sair o primeiro rabisco não tem mais volta, nos jogaremos mesmo. Cada um no seu tempo de descoberta e agora na descoberta deste novo grupo que em cena estará buscando essa nova timbragem .

Marco, César, eu e Camille em cena com Fernando na direção, estaremos remando rumo a novos caminhos, em busca de histórias que nos façam deleitar assim como o Capitão Marinho que se deleitou ao conhecer de perto os encantos do mar. Que se deixou levar pelo desconhecido, pela novidade, pela empolgação, pelo canto da sereia, mas que percebeu que o belo pelo belo de nada serve, que o que mais vale é continuar construindo o seu trabalho por mais árduo que pareça. De ter as rédeas nas mãos, de dá corda a imaginação, mas continuar a exercer o seu ofício com alegria e daí tirar o seu sustento. Buscar a riqueza detalhada nas coisas e cantos mais simples.

Assim como Marinho imaginava o seu mar cheio de peixes coloridos, tubarões perigosos, golfinhos, etc, nós apenas imaginamos mesmo, pois não temos a menor idéia de como será este espetáculo. Sem medo de se afogar vamos nos entregar a André, a Elder, a Mona, a Rafael e Márcio, a Wanda, a Marco, a Ronaldo, tudo ao comando de Fernando. Cada um com a sua concha, para escutar o marulhar das ondas, as canções, as histórias.

Buscaremos ser como Marinho que contava histórias de um jeito tão verdadeiro e fervoroso que a todos conquistava.