quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Crítica no Estadão de hoje!

O Nordeste à porta de Shakespeare
Grupo do Rio Grande do Norte encena a saga do sertanejo que sonha com sereia

Crítica Jefferson Del Rios

A imagem mítica do mar que vira sertão renasce no espetáculo O Capitão e a Sereia, que o Teatro Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, trouxe a São Paulo (somente até o dia 29). O potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), glória nacional por seus estudos antropológicos e obras como o Dicionário do Folclore Brasileiro, certamente gostaria deste grupo surgido nos anos 90. A trupe carrega, nos seus inventos e guardados, as tramas de Shakespeare e lendas coloridas como, por exemplo, a do Cavalo Marinho, uma das mais bonitas festas populares do Nordeste. O enredo atual é atribulado e imaginoso: uma certa trupe Tropega Mas Não Escorrega deve contar as façanhas do Capitão Marinho, que deseja ver o mar imenso e mergulhar em aventuras. Ocorre, porém, que o personagem central não aparece para encarnar a saga, o que obriga os artistas a malabarismos para entreter o público. O recurso matreiro desvenda a própria engrenagem física do teatro e, em termos mais complexos, as contradições e/ou paradoxos do ofício, suas possibilidades artísticas e ideológicas.

No entanto, o procedimento adotado não ajuda propriamente ninguém. A magia das fábulas tem vida própria, e resistem a elucubrações metalinguísticas/ brechtianas para explicar o "fazer teatral" (expressão empolada que pegou como um cacoete na profissão). A arte espontânea já se define faz tempo como "vadiagem". Luiz Gonzaga cantou "oi nesse coco não vadeio mais/ apagaro o candeeiro e derramaro o gás (gai)". Então, não compliquemos.

Uma crise dentro de um grupo é um lugar-comum. Todo empreendimento coletivo inclui momentos difíceis, e é preciso motivo mais relevante para fazer deles outra obra. O polonês Tadeusz Kantor (1915- 1990) criou um teatro genial quando ele e o elenco viviam nos subterrâneos de Varsóvia ocupada por tropas nazistas. Parte da experiência está no seu O Teatro da Morte (edições Sesc/Perspectiva). O diretor Fernando Yamamoto teve razões ao escrever o programa, mas são argumentos passíveis de não ajudar o espectador despreocupado quanto ao denominado "embate dialético". Encenador cuidadoso, Fernando está preocupado com a continuidade do projeto dos Clowns, o que é louvável. Apenas se deseja lembrar o senso de leveza de criadores populares, como Ascenso Ferreira, Ariano Suassuna, sem esquecer naturalmente o padrinho "Will" Shakespeare. Sobrecarga teórica pode, eventualmente, dar curto-circuito na comunicação.

Se for intenção do grupo viajar além do dramaturgo inglês, o imaginário da região tem muito a oferecer. A Pedra do Reino, de Suassuna, já chegou ao palco, mas ainda não se pensou, por exemplo, na obra de Newton Navarro (1928-91), do mesmo Rio Grande do Norte, e no conjunto de romances A Trilogia da Maldição, do cearense José Alcides Pinto (1923- 2008). Não foi por acaso que este escritor maior foi definido uma certa vez como "um espetáculo permanente".

Mas, de volta ao folguedo, O Capitão e a Sereia e toda a sua gente chegam à cena tão saborosos quanto a carne de sol com manteiga de garrafa do tradicional restaurante Lira, de Natal. Há nele contagiante disponibilidade afetiva. De saída, chamam a atenção os figurinos de Wanda Scarbi, que traduzem a nobreza sertaneja exaltada pelo mesmo Suassuna e Antonio Nóbrega.

Do original, de André Neves, à adaptação cênica, os papéis masculinos predominam. Cesar Ferrário e Marco França são intérpretes e músicos calorosos e engraçados. Camille Carvalho e Renata Kaiser asseguram a simpática presença da ala feminina. Se o entrecho é mesmo masculino e falastrão, cabe às moças acertarem com graça, aqui e ali, um épico de feira, simples e divertido. Os Clowns de Shakespeare só têm, portanto, motivos para comemoração da sua década e meia de existência.


Serviço
O Capitão e a Sereia. 70 min. 14 anos. Sesi Vila Leopoldina (80 lug.). Rua Carlos Weber, 835, tel. 3833-1092. 5.ª e sáb., 20 h; 6.ª, 16 h e 20 h; dom., às 19 h. Grátis (retirar ingressos uma hora antes). Até 29/11

Publicado originalmente em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091119/not_imp468625,0.php

4 comentários:

  1. Esta é para emoldurar num quadro e expor num lugar de destaque!!! Parabéns!!! Finalmente, mais um reconhecimento público do grande trabalho de vocês.

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  2. Crítica muito legal essa. Cheia de referências. Gostei.

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